terça-feira, 27 de outubro de 2009

O último discurso


Em 1939, a Alemanha de Hitler sonhava a utopia da superioridade ariana e da expansão tentacular a qualquer preço - um deles, a extinção do povo judeu. Em 15 de outubro de 1940, Sir Charles Spencer Chaplin Jr (Londres, 16 de abril de 1889/25 de dezembro de 1977, autor, diretor, roteirista e músico) lançou o filme O Grande Ditador, uma imortal, célebre obra de crítica aos ideais fascistas e nazistas, ao totalitarismo correntes à época em grande parte da Europa.


Este foi o primeiro filme sonoro de Chaplin, inaugurando um canal de expressão mais forte no roteiro de um discurso. Chaplin magistralmente interpretou dois personagens: um ditador e um barbeiro judeu, fisicamente idênticos. Há várias cenas inesquecíveis neste filme. Algumas silenciosas (como na sequência em que o ditador brinca com um globo terrestre) mas, nas cenas onde há som é poderosa a força da mensagem falada a atingir - ferina e crítica - o contexto político da época. O Último Discurso, cena que coroa todo este grande filme impressiona por sua atualidade: não há como ficar impassível frente àquelas palavras...Ao discurso totalitário de um sobrepõe-se o discurso do outro pregando a fraternidade universal...

Se àquela época vivia-se o terror da Segunda Guerra Mundial, ainda hoje o homem convive com a insanidade de guerras esparsas que parecem não ter fim e a angústia é a mesma. Precisamos rever, reler os grandes discursos - todos, sejam dos grandes ditadores, dos grandes pensadores, dos sábios, dos humildes, dos ignorantes, das crianças, da Natureza. Precisamos erguer os olhos como Hannah (referência à filósofa judia Hannah Arendt, 1906-1975 e, talvez à própria mãe de Chaplin) e acreditar que sairemos todos "da treva para a luz"...

Talvez o primeiro passo para isso seja a capacidade de extrair de cada discurso, de cada noticiário de jornal, de cada incidente doméstico a pergunta e a resposta que eles carregam intrinsecamente. Há sempre algo que podemos aprender, apreender, desde que nos propomos a arguir. Não podemos perder nossa capacidade de nos entristecer com o sofrimento alheio, não podemos assistir anestesiados aos noticiários e crê-los distantes.

Chaplin não se deixou embrutecer, nem se calou perante os fatos de sua época. Seu filme foi inicialmente mal recebido pela crítica e desencadeou a sua saída dos EUA.Temos muito a aprender com Chaplin e seus personagens (com o Charlot, ou em alguns países, Carlitos, com o ditador e com o barbeiro judeu). Seu canal de expressão foi o cinema...e o nosso, qual é?

Transcrevo abaixo, na íntegra, o texto de O último Discurso e, em video, a cena antológica.

O ÚLTIMO DISCURSO

"Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá”.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unâmo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unâmo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!"

Ficha Técnica:
Origem: E.U.A. - 1940
Duração: 123m (pb)
Autoria: Charlie Chaplin
Produção: Charlie Chaplin
Realização: Charlie Chaplin
Fotografia: Karl Strüss e Roland Totheroh
Música: Meredith Wilson
Com: Charlie Chaplin, Paulette Goddard, Jack Oakie, Billy Gilbert, Henry Daniell, Reginald Gardner, Grace Hayle, Maurice Moscovich, Emma Dunn.

3 comentários:

Anônimo disse...

Dia desses recebi de um amigo o video da canção "Smile", e que está voltando á tôna com a partida de outro genio Michael J.
O autores dessa bela canção são: Chaplin, Charles/Geoff Parsons/Phillips, J.
Generosa alma desse ator!Obrigada por recordar-me de mais esse fato dele.
abreijos
Mára

Amadeu Rafael disse...

Em homenagem ao grande
CHARLIE CHAPLIN
Dois orgulhos de Portugal
http://www.youtube.com/watch?v=ObL11AOeBhc

Alpha Leninha disse...

Meu querido amigo Amadeu Rafael, muito obrigada pelo video magnífico, particularmente belo na voz da espetacular Amália Rodrigues! Não poderia haver melhor complementação à mensagem que carreia esta postagem!Um sincero e fraternal abraço.
Deixo para os leitores a letra de Grândola, Vila Morena:
Grândola, Vila Morena
Terra da Fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade!

Dentro de ti ó cidade,
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, Vila Morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade!

Terra da fraternidade,
Grândola, Vila Morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena!

Á sombra de uma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola,a tua vontade!

Grândula,a tua vontade,
Jurei ter por companheira
À sombra de uma azinheira
Que já nao sabia a idade!
Que já não sabia a idade!