terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Bíblia é um manual de maus costumes




Esta é uma frase de José Saramago, grande escritor português, roteirista, jornalista, dramaturgo e poeta. Incluem-se entre suas inúmeras premiações o Prêmio Camões (1995) - distinção máxima oferecida aos escritores de lingua potuguesa - e o Nobel de Literatura (1998), o primeiro concedido a um escritor de lingua portuguesa.

José Saramago classifica a Bíblia como "um manual de maus costumes" e "um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana". "Sobre o livro sagrado, eu costumo dizer: lê a Bíblia e perde a fé!", disse o escritor, numa entrevista concedida à Lusa, a propósito do lançamento mundial do seu novo livro, intitulado Caim, este domingo, em Penafiel. (Veja o video)
"
A Bíblia passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável. É uma loucura!", afirma o Nobel da Literatura de 1998, para quem não existe nada de divino na Bíblia, nem no Corão.

Para o Nobel da Literatura, o seu novo livro não vai escandalizar os católicos, mas admitiu que poderá gerar reações entre os judeus."Na Igreja Católica não vai causar problemas porque os católicos não lêem a Bíblia, só a hierarquia, e eles não estão para se incomodar com isso. Admito que o livro possa incomodar os judeus, mas isso pouco me importa", disse.

Com Caim, Saramago regressa ao tema religioso, contando, em tom irónico e jocoso, a história de Caim, filho primogênito de Adão e Eva, quase duas décadas após o escândalo provocado pela sua obra "O Evangelho segundo Jesus Cristo" (1991).

A carreira de Saramago tem sido acompanhada de diversas polémicas. As suas opiniões pessoais sobre religião ou sobre a luta internacional contra o terrorismo são discutidas e algumas resultam mesmo em acusações de diversos quadrantes. Logo após a atribuição do Prêmio Nobel, o Vaticano repudiava a atribuição da honraria a um "comunista inveterado". Uma frase de Saramago:  "Marx nunca teve tanta razão como hoje".

Saramago é conhecido por utilizar frases e períodos compridos, usando a pontuação de uma maneira não convencional. Os diálogos das personagens são inseridos nos próprios parágrafos que os antecedem, de forma que não existem travessões nos seus livros: este tipo de marcação das falas propicia uma forte sensação de fluxo de consciência, a ponto do leitor chegar a confundir-se se um certo diálogo foi real ou apenas um pensamento.

 Muitas das suas frases (i.e. orações) ocupam mais de uma página, usando vírgulas onde a maioria dos escritores usaria pontos finais. Da mesma forma, muitos dos seus parágrafos ocupariam capítulos inteiros de outros autores. Apesar disso o seu estilo não torna a leitura mais difícil, se os seus leitores se habituarem facilmente ao seu ritmo próprio. Estas características tornam o estilo de Saramago único na literatura contemporânea: é considerado por muitos críticos um mestre no tratamento da língua portuguesa.

O novo livro, Caim (Editorial Caminho), a sair para as livrarias na próxima segunda-feira, 19 (com edição simultânea em português, catalão e castelhano), é mais um arbusto a queimar na fogueira das convicções. Nestas 181 páginas, o escritor regressa, vigorosamente, à religião, revisitando o Antigo Testamento, quase 20 anos depois da polêmica criada, em 1991, pelo romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, em que humanizava a figura de Jesus, tornando-o num jovem rebelde, e insinuava a sua relação com Maria Madalena (o norte--americano Dan Brown construiria um best-seller mundial sobre essa premissa)...

Saramago escolheu, pouco depois, residir definitivamente na ilha espanhola, alegando censura por parte do Governo português, quando o então subsecretário de Estado da cultura, Sousa Lara, impediu a candidatura desse livro ao Prêmio Europeu de Literatura. "Blasfêmia, blasfêmia!", disseram então alguns. Que dirão agora perante este Caim, dito primeiro homem concebido naturalmente e primeiro homicida na história humana, que matou o irmão por ciúmes, aqui a esgrimir com Deus? Um deus que o redime e com quem trava este diálogo: "Diremos que é um acordo de responsabilidade partilhada pela morte de abel, Reconheces então a tua parte de culpa, Reconheço, mas não o digas a ninguém, será um segredo entre deus e caim."

 O escritor já desfez, sobre esta produção literária, qualquer ilusão de se poder ler ali uma epifania ou um mea culpa, associado ao fato de ter roçado a proximidade com a morte, há cerca de um ano, quando esteve muito doente. O saldo existencial que fez não passou por confissões, contrições ou contradições. Em entrevista à agência Efe, aliás, Saramago declarou, recentemente, que "se Deus para mim não existe, eu não posso fazer um ajuste de contas com ele. O absurdo é que o ser humano primeiro inventou Deus e depois se escravizou a ele, isso é o que eu questiono nesta obra".

Terapia de choque

"Deus não é de confiança. Que diabo de Deus é este que para enaltecer Abel tanto despreza Caim?", lança o Nobel português, no trailer de Caim. E não só não é de confiança, como mente, incita à violência, arrecada riqueza, discrimina uns povos em detrimento de outros, entre outras patifarias, assegura o primogênito de Adão e Eva neste livro. Distante da leveza e do divertimento agridoce do livro anterior, A Viagem do Elefante, ou das considerações ensaiadas na blogosfera e compiladas em O Caderno, o novo volume (escrito em quatro meses) é um exercício irônico, provocatório, irreverente onde, apesar do humor flagrante de algumas passagens, Saramago aponta injustiças, crueldades, limitações ao livre arbítrio ou incongruências na narrativa do Gênesis.

Caim, que, na versão bíblica, está condenado a uma errância sem fim pelo mundo, estranhamente protegido pela mancha que Deus aqui lhe imprime na testa (que a ilustração de capa evoca, perturbadoramente, como um ferimento de bala, como um alvo a abater) transforma-se, aqui, num viajante espácio-temporal, digno de um relato de ficção científica.

De pulo em pulo, visita o futuro, percorrendo os principais capítulos do Gênesis: o sacrifício do filho de Abraão pedido por Deus, a suspensão da construção da torre de Babel por o senhor não querer uma língua universal, a descida de Moisés do Monte Sinai e o confronto com o bezerro de ouro que era o falso deus, a conquista de Jericó pelos israelitas na sua demanda da Terra Prometida, o Dilúvio e a Arca de Noé...

Faz-se testemunha mas também interveniente e júri a avaliar o Senhor: "(...) o leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim." Caim salta para a liça e salva o rapaz, e aproveita para dar um sermão ao anjo salvador que pede desculpas de chegar atrasado, pois surgiu-lhe "um problema mecânico na asa direita"... Mais à frente, Caim, por "curiosidade de turista", acompanha Deus e Abraão às cidades de Sodoma e Gomorra, regateando o número de inocentes que poderiam fazer o Criador poupar a cidade: começam nos cinquenta inocentes, quarenta e cinco, quarenta... Depois da queima de Sodoma, Saramago coloca Caim a lembrar ao pai das três religiões ( judaísmo, cristianismo, islamismo) a promessa divina não cumprida de poupar as cidades se houvesse dez inocentes: "Se os houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida. As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes.

Meu deus, murmurou abraão e a sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas." Noutro pulo temporal, o protagonista sentencia que "aqui, no sopé do monte sinai ficara patente a prova irrefutável da profunda maldade do senhor, três mil homens mortos só porque ele tinha ficado irritado com a invenção de um suposto rival em figura de bezerro. Eu não fiz mais do que matar um irmão e o senhor castigou-me, quero ver agora quem vai castigar o senhor por estas mortes, pensou caim."

 Pilar del Río, esposa do escritor e presidente da Fundação José Saramago, escreveu no blog: "Caim não é um tratado de teologia, nem um ensaio, nem um ajuste de contas: é uma ficção em que Saramago põe à prova a sua capacidade narrativa ao contar, no seu peculiar estilo, uma história de que todos conhecemos a música e alguns fragmentos da letra." Admitindo a perturbação possível em alguns leitores, ela defende que "a grande literatura está aí para cravar-se em nós como um punhal na barriga, não para nos adormecer como se estivéssemos num opiário e o mundo fosse pura fantasia." Um romance que é, diz, "literatura em estado puro".
E que venha o dilúvio

Caim é um exercício de liberdade de José Saramago: espelha a liberdade defendida pelo seu personagem que, por sua vez, espelha a liberdade defendida amiúde pelo escritor. E não se fica apenas pela subversão do tempo na narrativa e da intervenção do fraticida nos dogmas bíblicos. O autor dispara farpas sutis a temas contemporâneos como a crise e o desemprego, o acordo ortográfico, a acumulação de riqueza em nome do Senhor, os direitos dos homossexuais, ou a "propaganda" israelita. No início da sua deriva, Caim chega a uma cidade com um edifício em construção "nada que se pareça a mafra, versalhes ou a buckingham ". Os operários "logo perceberam que quem ali estava era mais uma vítima da crise, um triste desempregado à busca de uma tábua de salvação".

 Espectador da conquista de Jericó, faz estas considerações: "Como sempre tem sucedido, à mínima derrota os judeus perdem a vontade de lutar, e, embora na atualidade já não se usem manifestações de desânimo como as que eram praticadas no tempo de josué, quando rasgavam as roupas que tinham vestidas e se lançavam ao chão, com o rosto na terra e as cabeças cobertas de pó, a choradeira verbal é inevitável. Que o senhor educou mal esta gente desde o princípio, vê-se pelas implorações, pelas queixas, pelas perguntas de josué (...) este mesmo josué que costuma deixar atrás de si um rasto de muitos milhares de inimigos mortos em cada batalha perde a cabeça quando lhe morre a insignificância de trinta e seis soldados." Para bom entendedor, o livro dispara em muitas direções, muitos outros Caim que também terão uma mancha negra na sua testa.

Deus tudo sabe e tudo pode? Como um escritor face à sua obra. E Saramago escreve já outro romance, indiferente ao dilúvio que Caim pode provocar.





Informações retiradas de : http://aeiou.visao.pt/a-biblia-e-manual-de-maus-costumes-video=f533635 , http://www.ionline.pt/itv/19999-a-biblia-manual-maus-costumes-jose-saramago , http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago e http://aeiou.visao.pt/deus-nao-e-de-confianca=f533703

8 comentários:

Maria Lopes disse...

Parabéns pela postagem, apesar de polêmico sempre é momento para uma reflexão.Maria Lopes.

Unknown disse...

Também quero agradecer por esta excelente compilação, e pela divulgação de mais um livro de Saramago, que certamente irá suscitar a curiosidade de muitos leitores (crentes ou não)!
Um grande abraço Leninha e mais uma vez agradeço a sua atenção ao que se passa por cá.

Nau Coração de Estrelas disse...

Leninha, a contundência da abordagem do tema em causa e a capacidade que Saramago tem de fazer esta provocação e abanar as consciências adormecidas deste mundo católico e... nem tanto!
É isso que eu gosto nele. Obriga todos os que se interessam por comentar estes temas a lerem a Bíblia, a discutirem a Bíblia, a repensar e a questionar adquação e actualização dos textos Bíblicos aos tempos contemporâneos.
A Bíblia foi escrita num tempo em que não existia uma população letrada, portanto para gente que não lia. Pessoas para quem a palavra do sacerdote era a palavra de Deus, e neste caso não me refiro só aos textos biblicos, não! Refiro-me a qualquer palavra proferida pelo sr reitor! E ai, de quem a contestasse!
Hoje, as pessoas não têm medo de pensar e de comunicar o que pensam. Eu Sei que ele sabe que a comunidade católica não se sentirá tão ofendida como os a comunidade judaica e eu também questiono: Porque será?
Ele sabe que a maior parte da comunidade dos católicos não se vai ralar, "vozes de burro, não chegam ao céu!" diz o povo; o povo comprou a Biblia, mas não lê a Biblia! E com esta provocação de Saramago, ele pode ter conseguido a proeza que a Igreja Católica, Apostólia e Romana nunca conseguiu: Levar muita gente a ler a Biblia.
Beijo da amiga
Nau

psicobeleza disse...

a idéia de um deus tirano não é original,melhor mesmo que ele não existisse, não teríamos um mundo neurótico como diriam muitos; com certeza seríamos outra humanidade. Essa temática do deus narcísico é atraente, chega ser sedutora, não é a toa que muitos tem se interessado por esta obra;o que nos sobra é que como disse nossa amiga, podemos refletir aqui com toda liberdade sobre a que veio esta obra. Um grande abraço a todos!

Renata Frances Moraes disse...

Me desculpe amiga , eu estou perplexa com isso que acabo de ler . Sou católica praticante , leio a biblia , sou evangelizadora também , membro de pastoral , dizimista . O fato é que a maioria das pessoas não sabem o que é ser católico , se dizem católicos porque foram batizados pelos pais e quase nem passam na frente de uma igreja , não participa da vida da comunidade ...enfim não vive um credo e fala asneiras, "santa ignorancia" . o católico que verdadeiramente é católico , Lê a biblia SIM. É um livro que tem mais de dois mil anos , mas é atual.Não foi escrita por Doutores , mas por pessoas simples , os escolhidos e a escreveram por inspiração divina é preciso crer em Deus para acreditar : Deus não escolhe os capacitados , mas capacita os escolhidos. Como agente pode perceber assim como a dois mil anos ainda hoje existem os "fariseus" e "os homens das leis", àqueles que perseguiam Jesus ; por terem "titulos" , faziam de tudo para contradizer o que jesus pregava , até que finalmente o levaram a crucificação .
Crucificaram alguém que só veio trazer amor e libertação.
Gente estamos no mundo de passagem , nada nos pertence, não levamos nada. Vamos nos amar mais , amar o próximo e fazer desse mundo um mundo melhor e com pessoas melhores . Renata Moraes

Nau Coração de Estrelas disse...

Querida amiga Leninha:
Na nossa constante procura, encontramos a documentação(http://tv1.rtp.pt/noticias/?headline=20&visual=9&tm=8&t=Um-em-cada-10-portugueses-dizem-ter-lido-todo-o-texto-da-Biblia.rtp&article=288572) que nos faltava para confirmar aquilo que dissemos sobre o assunto.
Até aquilo que não dissemos e também pensamos. Por exemplo que: As Testemunhas de Jeová conhecem melhor a Biblia do que os católicos. E não vale apena regatearmos este facto com grande pena minha. Mas embora eu acredite que vou ter que prestar contas dos meus actos ao Pai no dia do juízo final, eu não vou por aí de terra em terra, de porta em porta, sozinha pregar a Bíblia!!! Imagina o que o Padre da Paróquia começava logo a falar...(A Nau está louca!Quer ocupar o lugar que é meu...etc, etc.). Eu recebi alguns Sacramentos, mas não o do Sacerdócio. Era logo o que o Padre me diria: "Cada macaco no seu galho!"
Beijo

Unknown disse...

Olá amiga Leninha..
Só pelo facto de José Saramago ser um escritor Prémio Nobel, não lhe dá o direito de querer impor a todos cristãos, a sua vontade de ateu e comunista. Como pessoa pública que é, sem discussão, ele devia, tal como aqui já foi dito (cada macaco no seu galho) remeter-se ao seu hobi, já que não faz mais nada na vida dele, e escrever, que parece que é só o que sabe fazer.
Se está a pensar em alterar a sua nacionalidade, que o faça. Não pense ele que vai incomodar os Portugueses, só pelo facto do Nobel que ele tem mas, que não faça comentários para os quais não foi chamado nem autorizado e , parece que nem tem conhecimentos Teológicos para tal.
Obrigado por ter este maravilhoso espaço, que assim ajudará a esclarecer muitas duvidas e terá a sua parte de contribuição para umas trocas de ideias.

Anônimo disse...

Podem dizer o que entendem sobre Saramago.Uma coisa ele já conseguiu.Por toda a gente a discutir a Biblia, e quiçá, muitos irão pela primeira vez na sua vida ler-la para confirmar o que ele afirma.
Se foi ou é comunista não conta para nada.Se vive em Espanha ou não também não conta.
Nós todos precisamos de vez enquando de ser acordados para certas realidades.